domingo, 14 de março de 2010

Tempo de Fome é Tempo de Partilha


Paz e Bem irmãos e irmãs. Muitos de vocês já sabem que estou em missão ad gentes em Moçambique. Assim, gostaria de partilhar com vocês minhas primeiras impressões e sentimentos em solo africano.
Minha primeira visita missionária foi a Paróquia de Larde. Para a comunidade, a nossa chegada, novos missionários, é uma grande festa. E durante todo final de semana, que acontecia o Conselho Paroquial, foi este o clima. Segundo as palavras do animador paroquial, Felisberto Natapi, “graças a fraternidade que existe entre a Igreja do Brasil e Moçambique hoje estamos com uma nova equipe missionária” e também “agradecemos e lembramos a Igreja do Brasil que com grande vontade de partilhar a mesma fé interessam-se em nos enviar missionários que hoje estão cá presentes. Estamos muito satisfeitos pela vossa presença irmãos missionários.”
Todo o encontro foi um momento rico para, através das conversas, ir conhecendo aos poucos os costumes, os sentimentos, as alegrias, esperanças, dores e angustias do povo. Através dessa convivência fraterna fiquei sabendo da situação difícil que muitos estão passando. Durante a época de chuva, a história se repete todos os anos, há muita fome. E uma das regiões mais atingidas é a Paróquia de Larde. Conversando com alguns jovens da zona de Ivate ficamos sabendo que muitas famílias estão tendo apenas uma refeição por dia. E o mais alarmante é que essa refeição é apenas uma sopa preparada com folhas de mandioca. Um menino, que brincava próximo enquanto conversávamos, comentou que queria ir à escola mas seus pais não tem condições de lhe dar os cadernos e também se sente fraco devido a fome. Pe. Maurício perguntou se ele não esquecia a fome enquanto brincava. Ele respondeu: 'Não, ta na minha cabeça. Não tem como esquecer.' Naquele instante, ao ouvir essa frase, senti um nó na garganta. Ao mesmo tempo fui bombardeada com imagens cotidianas de nossa sociedade dita 'globalizada'. Sei que o problema da fome vai além da questão de dinheiro, é fruto do sistema em que vivemos. E a globalização, bem sabemos, beneficia uns poucos, enquanto exclui e marginaliza a maioria. Vivemos em uma sociedade que está se tornado escrava do tempo e do supérfluo. O celular ultramoderno que se fabrica hoje, amanhã já está 'fora de moda'. Acenamos com um mundo de possibilidades à um povo que em silêncio grita de fome. Não falo que se deve recusar os benefícios, que são muitos, da tecnologia, mas devemos colocá-los a serviço de todos.
Mas não olhemos para o povo Moçambicano com pena ou dó. Em meio a tanta dificuldade o povo se ajuda, aos poucos vão tecendo novas possibilidades, as pessoas se organizam, decidem juntas. Impressiona ver como os pobres sabem superar os momentos de dificuldade. Na maioria são desempregados ou possuem um salário de fome. Cultivam a monocultura, geralmente a mandioca, em suas machambas. Percorrem longas distâncias, de pés descalços, para buscar água. Vivem em moradias desumanas. Superando barreiras e dificuldades nos dão um exemplo de luta e amor a vida.
É a teimosia pela sobrevivência.
Contudo, isso não nos dá o direito de sermos indiferentes. De continuarmos nossa 'vidinha' de consumistas desenfreados. Pare e pense, por um minuto. Pense que, no exato momento em que colocamos um prato de comida no lixo, uma criança está morrendo de fome.
Será que tornamos-nos uma sociedade alienada que age sem pensar nas consequências?
Ou então somos tão egoístas e mesquinhos a ponto de não nos importarmos com a dor do outro?
Tenho medo da resposta. E, na verdade, acredito que qualquer uma das duas opções são assustadoras.
A frase do menino tem sido minha companheira. Não tem como esquecê-la, está na minha cabeça, e encravada no meu coração.
A acolhida da comunidade de Larde também carrego comigo: Para demonstrar a alegria que sentem com nossa chegada nos ofereceram nas refeições carne de cabrito, o melhor prato de sua cultura. Assim como a viúva que 'na sua pobreza depositou tudo o que tinha' (Mc 12, 44b) a comunidade de Larde nos ensina que em tempo de fome também é tempo de partilha e nos ofereceram o melhor.
Em meio a tanta miséria recebo uma lição de partilha, de acolhida ao estrangeiro, de paixão pela palavra de Deus.
Que esse gesto nos leve a pensar e, espero, a agir um dia.
Tatiane Silveira Soares
Missionária em Moçambique

sexta-feira, 5 de março de 2010

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara


Certa vez ao ler o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, uma frase me prendeu a atenção: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Pensei nas diversas situações que olhamos mas não paramos para ver. E não vendo, consequentemente, não reparamos.

Durante a caminhada de preparação para a missão ad gentes foram inúmeras as fotografias que olhei, procurei ver, reparar em cada detalhe. Cada fotografia era como se fosse a cena congelada de uma peça de teatro que me deixava encantada. Procurei conhecer a cultura macua reparando nos sorrisos, olhares, expressões do povo e de todo cenário que os rodeava.

Hoje, com os pés em solo moçambicano, me encontro dentro das cenas de teatro que tantas vezes olhei, vi e reparei-as imóveis. Nossa casa em Moma está inserida no meio do povo. Acordo com as conversas das mulheres indo buscar água no poço. Abro a janela e vejo as crianças indo para a escola. Caminho pelas ruas, cobertas de areia, cumprimentando e conhecendo novas pessoas. Passo pelo mercado e sinto o cheiro de peixe. Participo de celebrações tão cheias de vida e do Espírito Santo.

Agora os vejo não apenas com os olhos mas também com o coração, olfato, tato, ouvido.

Tatiane Silveira Soares
Missionária em Moçambique