sábado, 19 de junho de 2010

Ironia do destino


Morávamos próximo...
mas a quanto tempo não sentamos para conversar?
Ironia... tive que percorrer milhas,
atravessar um oceano,
migrar para outro continente...
para então, com o coração imerso em saudades,
me sentir mais perto de ti
... e perceber o que antes
tu já sabias!

quinta-feira, 15 de abril de 2010

Até aos confins da terra



É certo que nós próprios precisamos de missionários,
mas devemos dar de nossa pobreza.
(Puebla, 368)


Como as primeiras comunidades dos Atos dos Apóstolos temos o desafio de deixar-nos conduzir pela presença do Espírito Santo. Em pentecostes Deus cumpre sua promessa e envia seu Santo Espírito incitando-nos a ser Igreja Missionária. A missão de Jesus torna-se a missão da Igreja. É o próprio Cristo que nos envia em missão assim como o Pai O enviou: pelo mundo inteiro, a toda criatura (Mc 16, 15), todas as nações (Mt 28, 19), todos os povos (Lc 24, 47).
É o próprio Deus que toma a iniciativa e convida-nos a colocarmo-nos a caminho. O projeto é d'Ele. Somos instrumentos em suas mãos. Nenhum cristão pode esquivar-se deste dever supremo: anunciar Cristo até aos confins da terra (At 1, 8).
Todavia, apesar do convite missionário a todos cristãos, o número daqueles que ignoram Cristo, e não fazem parte da Igreja está em contínuo aumento. Muitos lugares são de primeira evangelização. Inúmeras paróquias estão sem a presença de sacerdotes, religiosos e religiosas, leigos e leigas missionários. Muitas comunidades passam um ano inteiro sem celebrar a Eucaristia.
Nossa equipe missionária sente essa realidade de perto. Atendemos duas paróquias, Larde e Micane, totalizando 140 comunidades. Além do número elevado ainda existe o problema das distâncias. Uma verdadeira peregrinação que fazemos por amor a Palavra de Deus.
Mas não se caminha sozinho por está estrada missionária. Não somos nós apenas que estamos aqui, mas toda a Igreja do RS que nos enviou. Esta obra não é somente nossa mas de todo o povo de Deus que de alguma forma contribui para que a missão se realize. A missão só é possível devido as muitas mãos que se estendem em favor do próximo.
Agradeço ao Pe. Rodrigo que me fez o convite despertando um sonho já adormecido. Pe. Adilson Corrêa que me fez acreditar que um outro mundo é possível. A Dom Jaime kohl que abriu as portas e me acolheu. A Silvane Agnolin que ao cuidar de situações práticas tornou-se uma grande amiga. Ao Pe. Erni e toda Paróquia Divino Espírito Santo que me apoiou e incentivou. A minha família que apesar de não compreender minha decisão esteve sempre ao meu lado. E todos meus amigos e amigas, famíliares e pessoas que talvez eu nem conheça mas que rezam e contribuem de alguma maneira para que a missão de Jesus Cristo se realize aqui em Moçambique em meio a este povo tão sedento da Palavra de Deus.
Somos todos missionários. Lembrem, o projeto é do Pai. Jesus envia. O Espírito Santo Guia. E nós precisamos ter a mesma coragem que moveu os primeiros missionários para gastarmos nossa vida a serviço do irmão.
Sinto chegado o momento de uma entrega total, da Igreja do RS, a causa missionária na certeza que não estamos sozinhos: “Eis que eu estarei com vocês todos os dias, até o fim do mundo”

(Mt 28, 20b).

quarta-feira, 7 de abril de 2010

Resposta




Dentro de mim há uma luta que me consome por inteira. Rivalizam entre si a razão e a emoção. Uma batalha incessante em busca de respostas para o turbilhão de situações que presencio e não entendo.
Não vivia no paraíso, motivo que me tirou o sono diversas noites. Me questionava o porquê partir em missão além fronteiras com tantos problemas em meu jardim. Racionalmente não encontrei motivos. Pelo contrário, o bom senso me deu inúmeros argumentos para ficar em casa. Contra a correnteza lógica, resolvi, como sempre, seguir meu coração. E, hoje, sou peregrina pelas estradas moçambicanas colhendo novas perguntas que inquietam meu ser.
Procuro, não somente, respostas para tanta miséria em um mundo com tantos recursos. Busco, porém, compreender o porquê de tanto conformismo perante a degradação humana. Nem escandalizo-me mais com a inércia das pessoas que não olham de perto o cinza da fome que se pode ver estando aqui com os pobres. Mas fico pasma com o comodismo e frieza daqueles que presenciam a miséria deste povo sabendo o luxo e ostentação que muitos usufruem por detrás dessa cortina de vidro. E minha indignação vai além ao recordar que tais riquezas, americanas e européias, foram erigidas sobre ombros africanos, a custa de muito suor e sangue derramado deste povo que hoje sofre como se ninguém percebesse.
E não adianta dizer-me que “sempre foi assim”. Me perdoem aqueles que me acharem piegas mas meu coração não se aguenta ao saber que aqui muitos tem apenas uma refeição por dia. Que consomem, durante a vida inteira, uma alimentação baseada apenas na caracata* e na chima** enquanto em outras partes deste mundão de meu Deus outros se deliciam em banquetes diariamente. Que suas moradias são desumanas, não tendo nem onde recostar a cabeça, ao passo que outros tantos vivem em mansões. Que vestem-se maltrapilhos e possuem, no máximo, uma ou duas peças de roupa, ao mesmo tempo que criaturas superficiais saem na rua apenas vestidos com alguma etiqueta que lhe dê status pois se não for assim entram em crise. Que andam muitos quilômetros de pés descalço enquanto um filhinho-de-papai só calça nike ou então faz birra. Seria cômico se não fosse trágico esse papo de desigualdade social.
Como historiadora meu primeiro impulso é aproar minhas inquietações em terra firme baseada nos mais renomados pensadores como Karl Marx, Schopenhauer, Friedrich Nietzsche, Engels.
Bombardeada de informações, agora, respostas não me faltam.
Pondero e não fico convencida. Subitamente mergulho em minhas emoções. Todo meu corpo reage, olhos, boca, braços, mente, alma, coração. As respostas, que trariam soluções e que fariam a diferença, ainda não as encontrei.
Sinto como se perdesse o rumo...
Tenho que encontrar um equilíbrio entre a razão e a emoção.

Tatiane Silveira Soares
Missionária em Moçambique


*Caracata: seca-se a mandioca ao sol e posteriormente se prepara uma espécie de polenta.
** Chima: uma papa preparada com milho branco.

domingo, 14 de março de 2010

Tempo de Fome é Tempo de Partilha


Paz e Bem irmãos e irmãs. Muitos de vocês já sabem que estou em missão ad gentes em Moçambique. Assim, gostaria de partilhar com vocês minhas primeiras impressões e sentimentos em solo africano.
Minha primeira visita missionária foi a Paróquia de Larde. Para a comunidade, a nossa chegada, novos missionários, é uma grande festa. E durante todo final de semana, que acontecia o Conselho Paroquial, foi este o clima. Segundo as palavras do animador paroquial, Felisberto Natapi, “graças a fraternidade que existe entre a Igreja do Brasil e Moçambique hoje estamos com uma nova equipe missionária” e também “agradecemos e lembramos a Igreja do Brasil que com grande vontade de partilhar a mesma fé interessam-se em nos enviar missionários que hoje estão cá presentes. Estamos muito satisfeitos pela vossa presença irmãos missionários.”
Todo o encontro foi um momento rico para, através das conversas, ir conhecendo aos poucos os costumes, os sentimentos, as alegrias, esperanças, dores e angustias do povo. Através dessa convivência fraterna fiquei sabendo da situação difícil que muitos estão passando. Durante a época de chuva, a história se repete todos os anos, há muita fome. E uma das regiões mais atingidas é a Paróquia de Larde. Conversando com alguns jovens da zona de Ivate ficamos sabendo que muitas famílias estão tendo apenas uma refeição por dia. E o mais alarmante é que essa refeição é apenas uma sopa preparada com folhas de mandioca. Um menino, que brincava próximo enquanto conversávamos, comentou que queria ir à escola mas seus pais não tem condições de lhe dar os cadernos e também se sente fraco devido a fome. Pe. Maurício perguntou se ele não esquecia a fome enquanto brincava. Ele respondeu: 'Não, ta na minha cabeça. Não tem como esquecer.' Naquele instante, ao ouvir essa frase, senti um nó na garganta. Ao mesmo tempo fui bombardeada com imagens cotidianas de nossa sociedade dita 'globalizada'. Sei que o problema da fome vai além da questão de dinheiro, é fruto do sistema em que vivemos. E a globalização, bem sabemos, beneficia uns poucos, enquanto exclui e marginaliza a maioria. Vivemos em uma sociedade que está se tornado escrava do tempo e do supérfluo. O celular ultramoderno que se fabrica hoje, amanhã já está 'fora de moda'. Acenamos com um mundo de possibilidades à um povo que em silêncio grita de fome. Não falo que se deve recusar os benefícios, que são muitos, da tecnologia, mas devemos colocá-los a serviço de todos.
Mas não olhemos para o povo Moçambicano com pena ou dó. Em meio a tanta dificuldade o povo se ajuda, aos poucos vão tecendo novas possibilidades, as pessoas se organizam, decidem juntas. Impressiona ver como os pobres sabem superar os momentos de dificuldade. Na maioria são desempregados ou possuem um salário de fome. Cultivam a monocultura, geralmente a mandioca, em suas machambas. Percorrem longas distâncias, de pés descalços, para buscar água. Vivem em moradias desumanas. Superando barreiras e dificuldades nos dão um exemplo de luta e amor a vida.
É a teimosia pela sobrevivência.
Contudo, isso não nos dá o direito de sermos indiferentes. De continuarmos nossa 'vidinha' de consumistas desenfreados. Pare e pense, por um minuto. Pense que, no exato momento em que colocamos um prato de comida no lixo, uma criança está morrendo de fome.
Será que tornamos-nos uma sociedade alienada que age sem pensar nas consequências?
Ou então somos tão egoístas e mesquinhos a ponto de não nos importarmos com a dor do outro?
Tenho medo da resposta. E, na verdade, acredito que qualquer uma das duas opções são assustadoras.
A frase do menino tem sido minha companheira. Não tem como esquecê-la, está na minha cabeça, e encravada no meu coração.
A acolhida da comunidade de Larde também carrego comigo: Para demonstrar a alegria que sentem com nossa chegada nos ofereceram nas refeições carne de cabrito, o melhor prato de sua cultura. Assim como a viúva que 'na sua pobreza depositou tudo o que tinha' (Mc 12, 44b) a comunidade de Larde nos ensina que em tempo de fome também é tempo de partilha e nos ofereceram o melhor.
Em meio a tanta miséria recebo uma lição de partilha, de acolhida ao estrangeiro, de paixão pela palavra de Deus.
Que esse gesto nos leve a pensar e, espero, a agir um dia.
Tatiane Silveira Soares
Missionária em Moçambique

sexta-feira, 5 de março de 2010

Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara


Certa vez ao ler o livro Ensaio Sobre a Cegueira, de José Saramago, uma frase me prendeu a atenção: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Pensei nas diversas situações que olhamos mas não paramos para ver. E não vendo, consequentemente, não reparamos.

Durante a caminhada de preparação para a missão ad gentes foram inúmeras as fotografias que olhei, procurei ver, reparar em cada detalhe. Cada fotografia era como se fosse a cena congelada de uma peça de teatro que me deixava encantada. Procurei conhecer a cultura macua reparando nos sorrisos, olhares, expressões do povo e de todo cenário que os rodeava.

Hoje, com os pés em solo moçambicano, me encontro dentro das cenas de teatro que tantas vezes olhei, vi e reparei-as imóveis. Nossa casa em Moma está inserida no meio do povo. Acordo com as conversas das mulheres indo buscar água no poço. Abro a janela e vejo as crianças indo para a escola. Caminho pelas ruas, cobertas de areia, cumprimentando e conhecendo novas pessoas. Passo pelo mercado e sinto o cheiro de peixe. Participo de celebrações tão cheias de vida e do Espírito Santo.

Agora os vejo não apenas com os olhos mas também com o coração, olfato, tato, ouvido.

Tatiane Silveira Soares
Missionária em Moçambique